Autarquia vinculada ao Ministério da Saúde está no centro de uma disputa entre Doria e Bolsonaro envolvendo vacina chinesa. Ex-presidentes da Anvisa advertem que agência não pode ser usada para fins políticos.
Enquanto alguns países já deram a largada para o uso em massa de vacinas contra a covid-19, o Brasil vive um clima de disputa entre o governo federal e o de São Paulo envolvendo a Coronavac, imunizante desenvolvido pela empresa chinesa Sinovac. No centro da disputa está a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pois cabe à autarquia, vinculada ao Ministério da Saúde, autorizar o uso de qualquer imunizante no Brasil.
Na segunda-feira, o governador de São Paulo, João Doria, anunciou um plano de vacinação com início para 25 de janeiro, utilizando doses da Coronavac, produzidas mediante acordo entre o Instituto Butantan, ligado ao governo paulista, e a Sinovac. Mas o imunizante vem enfrentando resistência por parte do governo federal nos últimos meses.
Em outubro, Pazuello chegou a ser desautorizado por Bolsonaro após anunciar a intenção do governo federal de comprar 46 milhões de doses da vacina chinesa. Algumas horas depois da fala do ministro, o presidente disse que o país não compraria o imunizante.
Nesta terça, em reunião com os governadores, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ignorou a Coronavac e previu que a Anvisa fosse aprovar uma vacina apenas em fevereiro. Na quarta, no entanto, o ministro garantiu que a Coronavac também será usada no plano nacional de imunização se for aprovada pela Anvisa.
Interlocutores do governador paulista afirmam que ele estaria disposto a levar a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF) caso a vacina de tecnologia chinesa não seja avalizada pela Anvisa até o início do ano. Na reunião com o ministro, Doria acusou a pasta de estar agindo de “forma ideológica” contra o imunizante.
“Dança de pavões”
Fundador e ex-presidente da Anvisa, o sanitarista Gonzalo Vecina Neto classifica a situação como uma “dança de pavões”. À DW Brasil, ele afirma que a Anvisa não pode negar o registro de um produto se toda a documentação, referente a todas as fases obrigatórias de testes, for entregue corretamente.
Ele explica que em uma situação normal, esse registro pode levar de 1 a 2 anos. “Mas em caso de emergência sanitária, [o prazo] pode ser abreviado, para algo em torno de 90 dias. Se for submissão final, podemos falar em 30 dias para sair um registro”, diz ele.
Vecina Neto diz “submissão final” porque, no contexto da atual pandemia, a Anvisa passou a aceitar um acompanhamento de “submissão contínua” das fases de testes – em uma situação normal, tudo é analisado apenas depois de o desenvolvimento ter sido concluído.
“O que a agência não poderá fazer é demorar sem razão, procrastinar. Temos de cuidar para que isso não aconteça, pois seria sinal claro de que estaria havendo interferência política na análise”, pontua ele.
“É óbvio que pode acontecer uso político da agência. Seria uma coisa ignorante, muito idiota, pois todo mundo vai ficar sabendo. Se toda a documentação é entregue e não há uma resposta, tem de existir uma causa e a causa obviamente será essa questão da politização. Se isso acontecer, o cheiro será sentido à distância.”
Instrumentalização da Anvisa?
Críticos do governo federal têm observado, no jogo de xadrez do Planalto, movimentos no sentido de garantir o controle político da Anvisa.
Publicada no Diário Oficial da União em 12 de novembro, a nova composição da diretoria colegiada da autarquia tem como diretor-presidente um contra-almirante aliado do presidente, Antonio Barra Torres; uma diretora que já defendeu, nas redes sociais, o uso da hidroxicloroquina como remédio para covid-19 – sem comprovação científica –, Cristiane Rose Jourdan Gomes; e um servidor público próximo ao grupo político chamado de centrão, Alex Machado Campos.
No mesmo dia, o presidente publicou a indicação de mais um militar, o tenente-coronel reformado Jorge Luiz Kormann, para assumir uma vaga na diretoria do órgão – o nome ainda precisa ser ratificado pelo Senado.
Vecina Neto não vê a “estrutura debaixo dos diretores, com seus 3 mil servidores públicos, lentamente construída com concursos públicos, treinamentos, capacitações e respeito pela sociedade” se curvando a uma tentativa de politização da agência. “Não acredito que um almirante ou um cabozinho qualquer vai conseguir dar nó nessa máquina burocrática que é a Anvisa. Mas isso pode ser tentado, o que seria um sinal de muita ignorância”, diz.
À DW Brasil, o médico Claudio Maierovitch, também ex-presidente da Anvisa, enfatizou que a agência “não deve ser submetida a pressões que não aquelas de natureza técnica e científica”.
“Acredito que a Anvisa tem competência técnica e mecanismos para tratar adequadamente a situação de emergência. É fundamental que haja plena transparência dos critérios e procedimentos adotados”, frisa.
Procurado pela reportagem, o Instituto Butantan afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que quaisquer esclarecimentos sobre o processo de certificação do imunizante teriam de ser prestados pela Anvisa.
O que diz a Anvisa
Em nota à DW Brasil, a Anvisa afirma que conta “com mecanismos de priorização de análise para dar maior celeridade ao processo de avaliação de produtos de interesse do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde”.
“Considerando o momento de pandemia, a Anvisa reforçou ainda mais a priorização dessas análises, com a definição de critérios extraordinários e temporários para o tratamento de pedidos de registro”, informa a pasta.
“De acordo essas regras, o prazo para a primeira manifestação sobre o pedido de registro de vacinas contra covid-19 é de até 60 dias. Neste período, a Agência pode conceder o registro, solicitar informações complementares para análise ou, ainda, indeferir o pedido – este prazo refere-se exclusivamente ao registro. Já a solicitação para a realização de estudos clínicos para covid-19 tem prazo médio para a manifestação é de até 72 horas.”
Sobre a escolha dos novos nomes da cúpula da autarquia, a Anvisa limita-se a dizer que “a nomeação de diretores de todas as agências é feita pelo presidente da República, sendo que os candidatos são submetidos ao crivo do Congresso Nacional por meio de sabatina e aprovação de sua indicação ou não pelo Senado”.
O papel do STF
Mas a questão pode mesmo ir parar no STF? De acordo com o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-Direito, não diretamente.
“Em tese, se a Anvisa criar problemas indevidos, isto é, adiar sem razão ou indeferir sem justificativa, o Judiciário pode ser acionado para rever o ato da agência. A competência não é diretamente do STF, mas da Justiça Federal da primeira região, em Brasília”, esclarece, à DW Brasil.
“Após o julgamento em primeira instância, o caso irá ao Tribunal Regional Federal. De lá é possível que as partes interessadas levem a discussão para o Superior Tribunal de Justiça, se a discussão for quanto ao cumprimento de lei, ou para o Supremo Tribunal Federal, em caso de cumprimento de constituição”, explica. “Não é fácil para o Judiciário interferir em questões técnicas.”
Há quem veja uma brecha na legislação que poderia permitir a vacinação ser realizada no Brasil, de forma emergencial, sem a aprovação da Anvisa – desde que aprovada por uma agência reguladora de outro país. A lei de emergência sanitária publicada pela presidência em 6 de fevereiro prevê “autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus”.
Vecina Neto, contudo, não acredita que esteja aí um salvo-conduto para a imunização sem aval da agência. “Sem registro não é possível”, defende. “Essa lei […] permite a compra de produtos sem registro no país […] em caso de falta do produto no Brasil. É no sentido de algo que existia e comece a faltar, o que não é o caso de uma vacina que nunca esteve presente.”
“Mas é uma discussão jurídica que pode ser um dos caminhos adotados pelo governador João Doria e outros governadores que estão discutindo o estado de catalepsia que toma conta da administração pública federal”, diz ele.
Na nota enviada à reportagem, a Anvisa destaca que “não cabe à agência tecer qualquer comentário sobre a decisão do referido gestor” – referindo-se, no caso, a Doria.
Fonte: dw.com