Discutir a crítica de arte hoje constitui um desafio, já que nem o público, nem os artistas nem os próprios críticos acreditam que ela exista de fato no Brasil contemporâneo. Para desenvolver essa ideia, vamos nos valer de três auxílios: o filme Ratatouille (2007), de Brad Bird, a experiência do premiado violinista norte-americano Joshua Bell tocando incógnito no metrô de Washington, DC, EUA, e dez caminhos para o crítico do século XXI.
No filme Ratatouille, o protagonista é um rato que, com um olfato privilegiado, sonha em ser um chefe de cozinha. Quem rouba a cena, no entanto, não é o simpático protagonista, mas o personagem Anton Ego, um rigoroso crítico de gastronomia. Seu sobrenome já mostra a sua personalidade. Ensimesmado, repleto de caras e bocas, degusta criticamente os mais variados pratos. Temido por todos, só consegue rever seus rígidos conceitos e valores ao experimentar uma receita de um prato camponês, o ratatouille, desenvolvido pelo rato – cozinheiro. Ao sentir aquele sabor, retorna à infância e encontra na simplicidade uma forma de repensar a sua atitude perante a vida, o que inclui a recuperação da capacidade de rir.
Esse mesmo atributo de rir de si mesmo foi desenvolvido pelo violinista Joshua Bell, um dos maiores do mundo. Ele participou, dia 12 de janeiro de 2007, de uma experiência idealizada pelo jornal Washington Post. Usando boné, calça jeans e camiseta, tocou, durante 43 minutos, um repertório que incluía Bach, entre outros compositores.
Das 1.097 pessoas que passaram à frente dele, apenas 27 deixaram dinheiro, num total de US$ 32,00, absurdamente abaixo do cachê dele, cerca de US$ 1 mil por minuto de apresentação. Se as pessoas soubessem que aquele músico era famoso provavelmente parariam para olhar e, se ele estivesse sendo fotografado ou filmado por câmeras de televisão, certamente lhe dariam mais atenção.
Em síntese, o público é cada vez mais levado pelas aparências, pelo rótulo que lê e ouve na mídia, e menos pela sua sensibilidade, pelo que, de fato, ouviu, leu ou escutou.
Porém, se um crítico de alguma instituição reconhecida, dá legitimidade a uma obra de arte, ela geralmente começa a ser aclamada por todos, que macaqueiam as palavras da “voz oficial” detentora do poder que a crítica institucionalizada, principalmente a oriunda das universidades, hoje representa. A voz do crítico, assim, se torna maior do que o ouvido ou a visão do observador.
Nesse contexto, sugiro pensar o crítico de arte na seguinte perspectiva:
- Abolir a divisão entre arte e ciência – Ao contrário do nosso mundo marcado por especialistas em especialidades, é desejável, como ocorria no Renascimento, a busca do saber nas mais variadas áreas, não havendo sentido na divisão entre arte e ciência.
- Acreditar no poder do homem – Ao contrário do homem medieval, que idolatrava Deus, e do tecnológico, que acredita na técnica em si mesma, é essencial valorizar o poder humano de criar, conservar e destruir o mundo e o que nele existe.
- Tratar a arte como sopro de vida – Além da técnica, ou seja, do saber fazer, o artista a ser valorizado precisa ter vida. Isso significa estar além do virtuosismo, aliando a alma ao talento.
- Ter contato com os mestres – Seguir um mestre, tanto para o crítico como para o artista, não é sinônimo de perda de liberdade, mas de constituição de uma base sólida para poder voar sozinho.
- Respeitar quem trabalha por encomenda – O crítico não deve rejeitar em princípio o artista que aceita trabalhar para o mercado. Aceitá-las constitui uma forma de sobrevivência, desde que feita com honestidade intelectual e competência.
- Planejar é tão importante quanto fazer – Torna-se fundamental acompanhar o trabalho no ateliê do artista. É ali que estão os muitos estudos e esboços – mentais ou concretos –, memórias dos trabalhos passados e matrizes dos presentes e futuros.
- Observar os cadernos de anotações – Para conhecer um artista, uma das melhores pistas é justamente o caderno de anotações e os desenhos. Lá está a alma que fala e o gesto que comunica uma essência perante a arte e a vida.
- Devotar-se ao detalhe – O notório saber é deixado de lado em função da mesmice decorada com títulos e quantificações de produção sem uma avaliação qualitativa adequada, que exige devoção à observação plástica dos detalhes.
- Amar a invenção – Lembrar que o artista digno desse nome mantém viva a
capacidade de estar sempre em mutação, combatendo a acomodação, principalmente quando a escola mais formata indivíduos do que os prepara para a vida. - Criatividade acima de tudo – Cabe ao crítico perceber o artista enquanto ele não é célebre. Isso exige a humildade de saber reconhecer o grande talento enquanto ainda ele é aparentemente pequeno.
O que é necessário são críticos humanos, capazes de ver na arte uma forma de transcender o cotidiano, não no sentido místico – ou talvez inclusive nele –, mas principalmente no estético e, acima de tudo, existencial. Isso exige humildade, atitude cada vez mais rara no mundo, inclusive – e principalmente – o da crítica.
Oscar D’Ambrosio
@oscardambrosioinsta
Pós-Doutor e Doutor em Educação, Arte e História da Cultura, Mestre em Artes Visuais, jornalista, crítico de arte e curador.